Duas velas para Sammy
Por: Simon Wiesenthal z"l
Extraído das Memórias de Simon Wiesenthal
O pai de Sammy era um alfaiate que morava em dois cômodos mofados e uma pequena cozinha numa casa velha. Porém eles eram felizes e religiosos. Toda sexta-feira à noite Sammy ia com o pai até a sinagoga, depois que sua mãe e irmã tinham acendido as velas do Shabat.
Em 1940 a SS abriu um centro de treinamento num antigo campo do exército polonês, perto de Rabka. Na primeira fase da guerra, os pelotões da SS fuzilavam suas vítimas; cinqüenta, até cem ou cento e cinqüenta pessoas por dia.
Os homens da SS estavam endurecendo em Rabka, devido a pressões para que se tornassem insensíveis ao sangue e aos gritos agonizantes das mulheres e crianças. O trabalho devia ser feito com um mínimo de confusão e um máximo de eficiência. Aquela era a Fuhrerbefehl – a ordem do Fuhrer.
O comandante da escola era o Coronel Wilhelm Rosenbaum de Hamburgo, Cínico e brutal, ele caminhava por toda parte com um chicote. "Sua aparência assustava a todos", lembrou a mulher de Rabka.
No início de 1942, o Coronel Rosenbaum ordenou que todos os judeus de Rabka aparecessem na escola local para "se cadastrarem". Os doentes e idosos seriam deportados, e os outros trabalhariam para a Wehrmacht.
Quando o cadastramento estava no fim, Cel. Rosenbaum surgiu, acompanhado por dois delegados, Hermann Oder e Walter Proch. Rosenbaum leu a lista de nomes, "De repente, bateu forte com o chicote na mesa", disse a mulher de Rabka. "Cada um de nós se encolheu como se tivesse sido chicoteado." Rosenbaum gritou: "O que é isso? Rosenbaum? Judeus! Como estes judeus se atrevem a ter meu bom nome alemão?"
Ele atirou a lista sobre a mesa e saiu furioso. Sabíamos que os Rosenbaum seriam mortos; era apenas uma questão de tempo. As pessoas seriam executadas porque seu nome era Rosenberg, ou se por acaso seu primeiro nome fosse Adolf ou Hermann.
A Escola de Polícia praticava execuções numa clareira na mata. Os alunos da SS atiravam em judeus e poloneses rodeados pela Gestapo, enquanto o Fuhrer Rosenbaum observava as reações dos alunos com uma indiferença clínica. Se um estudante vacilava, era retirado do esquadrão de fuzilamento e enviado para a frente de batalha.
Após o cadastramento, a Sra. Rawicz passou a trabalhar na Escola de Polícia como faxineira. "Quando os homens da SS voltavam das clareiras das florestas, eu tinha de limpar suas botas cobertas de sangue."
Numa manhã de sexta-feira em junho de 1942, dois homens da SS acompanharam o judeu Rosenbaum, sua mulher e a filha de quinze anos, Paula. Atrás deles ia o SS Fuhrer Rosenbaum.
"A mulher e a menina foram levadas ao pátio da Escola e então ouvi alguns disparos", disse a testemunha. "Eu vi o SS Rosenbaum espancar nosso Rosenbaum com seu chicote de montaria, gritando: 'Seus judeus sujos, vou ensiná-los a usar meu nome alemão!'
Então o homem da SS pegou seu revólver e atirou três vezes em Rosenbaum, o alfaiate. Em seguida o SS mandou um kapo não armado (policial judeu) ir à pedreira buscar Sammy. Ele foi a Zakryty numa carruagem a cavalo. Parou e acenou para Sammy Rosenbaum. Todos na pedreira ficaram olhando – os trabalhadores judeus e os guardas da SS. Sammy colocou no caminhão a pedra que tinha nas mãos e caminhou na direção da carruagem.
Sammy olhou para o kapo. "Onde eles estão?" perguntou. "Papai, Mamãe e Paula. Onde?" O kapo apenas balançou a cabeça.
Sammy entendeu, "Eles estão mortos", balbuciou ele, e falou simplesmente. "Nosso sobrenome é Rosenbaum, e agora você veio me buscar." Subiu na carruagem e sentou-se ao lado do kapo.
O policial tinha esperado que o menino chorasse, talvez tentasse fugir. Dirigindo de volta a Zakryty, o policial perguntou-se se deveria ter avisado o garoto, deixar que desaparecesse na mata, onde a resistência polonesa poderia ajudá-lo. Agora era tarde demais. Os guardas da SS estavam olhando.
O kapo disse a Sammy o que tinha acontecido naquela manhã. Sammy perguntou se poderiam parar por um momento na sua casa. Quando ali chegaram, ele desceu e caminhou até a sala da frente, deixando a porta aberta. Olhou para a mesa com as xícaras de chá do desjejum deixadas pela metade. Olhou para o relógio. Eram três e meia. Papai, Mamãe e Paula já estavam enterrados, e ninguém tinha acendido uma vela para eles. Lenta e metodicamente, Sammy esvaziou a mesa e colocou sobre ela o candelabro.
"Eu podia ver Sammy lá de fora", disse o kapo à Sra. Rawicz. "Ele colocou uma kipá e acendeu as velas. Duas para seu pai, duas para a mãe, duas pela irmã. E ele rezou. Eu via seus lábios se movendo. Ele recitou o Kadish por eles." Kadish é a prece pelos falecidos. Papai Rosenbaum sempre recitava o Kadish pelos pais mortos, e tinha ensinado a prece a Sammy. Agora ele era o único que restava de sua família. Ficou ali de pé em silêncio, contemplando as seis velas.
O policial judeu lá fora viu Sammy balançar lentamente a cabeça, como se tivesse se lembrado de algo. Então Sammy colocou mais duas velas sobre a mesa, riscou um fósforo e acendeu-as, e rezou.
"O menino sabia que já estava morto", disse o policial mais tarde. "Ele acendeu as velas e recitou o Kadish por si mesmo."
Sammy saiu e sentou-se perto do kapo, que estava chorando. O menino não chorou. O kapo enxugou as lágrimas com as costas da mão e puxou as rédeas, mas as lágrimas continuavam a cair. O menino não disse uma palavra. Tocou gentilmente a mão do homem – perdoando-o por levá-lo embora.
Seguiram até a clareira na floresta, onde o SS Fuhrer Rosenbaum e seus alunos aguardavam.
"Já era tempo!" trovejou o homem da SS.
Nenhuma lápide leva o nome de Sammy Rosenbaum. Ninguém teria se lembrado dele se a mulher de Rabka não tivesse entrado em meu escritório. Mas todo ano, num dia de junho, eu acendo duas velas por ele e recito o kadish.
Fonte:http://www.chabad.org.br/